sexta-feira, 22 de março de 2013

(IMAGINÁRIO EM PALAVRAS) A ficção científica de Ray Bradbury: a relação especular em "As crônicas marcianas"


Fazem já alguns anos que me vejo às voltas com o romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, desde a primeira vez que vi a adaptação de François Truffaut para o cinema em uma disciplina sobre memória ministrada pelo professor e amigo Éder Silveira no curso de História do Centro Universitário Metodista IPA. De lá para cá,  tornei-me um ávido consumidor de ficções distópicas e ressuscitei  minha paixão juvenil  por ficção científica que no auge dos meus 12 anos eu saciava com Isaac Asimov e H.G. Wells.


As crônicas marcianas, de Ray Bradbury

No final do ano de 2012 tomei conhecimento que um livro de contos de Bradbury, As crônicas marcianas, possuía uma versão de bolso pelo Editora Globo no mesmo formato do meu exemplar de Fahrenheit 451 (já lido e relido). Encomendei na hora e, após algumas andanças na fila das minhas leituras, finalmente cheguei nesse livro. Novamente, estou às voltas com um texto do romancista americano, e esse longo ensaio que aqui publico faz parte de uma reflexão inicial minha da relação entre a literatura fantástica e os mitos.

As crônicas marcianas, lançado originalmente 1950,  é uma reunião de contos que, em conjunto, formam uma espécie de romance sobre a colonização humana em Marte. Inicialmente, as primeiras três expedições encontram resistência por parte dos marcianos, mas, com a Quarta Expedição, os humanos se instalam em Marte e começam a reproduzir os seus modos de vida no planeta vermelho. Novos conflitos surgem entre os habitantes do planeta e os terráqueos. O projeto de colonização acaba com a explosão de uma nova grande guerra na Terra, obrigando todos os terráqueos a voltar para seu planeta natal. 

As viagens espaciais para Marte iniciam no universo ficcional dos contos em Janeiro de 1999. Bradbury projeta sua ficção científica para 50 anos depois do tempo em que produz seus textos, e o ambiente melancólico do futuro do homem encontrado em As crônicas marcianas, com uma humanidade alienada pelo conhecimento técnico-científico  e a beira de uma guerra nuclear, será reaproveitada posteriormente para a ambientação distópica na qual o personagem Montaigne vive em Fahrenheit 451.


A prosa fantástica de Ray Bradbury: a economia verbal 

A primeira coisa que me chamou a atenção nos contos foi a forma como Bradbury "naturaliza" o fantástico através de sua narração. No segundo conto, de nome "Ylla", datado como ocorrido em fevereiro de 1999, um mês após a saída do foguete da Primeira Expedição para Marte, conta-se a história de um casal marciano em que a mulher sente a chegada dos terráqueos em solo marciano. Encontrei assim já no segundo conto o auge do fantástico da obra: existem vida em Marte semelhante a humana que vive em uma organização social mais ou menos parecida com a da Terra.

A beleza desse conto, para mim, é a forma como Bradbury narra essa realidade surreal que existe em Marte. Ao invés de longas explicações sobre elementos econômicos, sociais e orgânicos, a palavra de Bradbury, por sua economia que lembra muito a linguagem épica, simplesmente nomeia esse mundo. É assim que a personagem senhora K é encontrada pelo narrador onisciente em uma "casa de pilastras de cristal" saboreando  todas as manhas "frutos dourados que cresciam em paredes de cristal" ou "limpando a casa de poeira magnética que se grudavam à sujeira". É assim também que o senhor K é visto em sua sala de leitura "lendo um livro de metal com hieróglifos em relevo sobre os quais passava a mão, como se toca uma harpa. E o livro, à medida que seus dedos o percorriam, cantava uma voz suave." No inicio da narrativa também fica-se sabendo que esse casal descende de um povo que já vive em Marte há dez mil anos.

Sem desdenhar a imaginação do leitor, Bradbury faz esse casal passear pelo céu estrelado de Marte em um liteira puxada por pássaros de fogo que sobrevoa as ruínas de uma civilização. Quando vão dormir, deitam uma uma névoa que, ao amanhecer, derrete-se e os pousa levemente no chão. Não há grandes explicações, a fantástico acontece, chegando próximo do maravilhoso. É assim que, frente a uma realidade completamente diferente, o estranhamento  do que está sendo lido sobre um casal marciano passa a aceitação não pelo excesso de explicações, mas pela economia delas.

Há outros elementos formais que se mantem  constantes nos contos posteriores, como a inserção de citação de músicas populares e poemas. Aqui a tradução da minha edição realizada por Ana Ban cometeu um tremendo erro amador ao traduzir em alguns contos os títulos e os versos das músicas e dos poemas e em outros não. 


A colonização de Marte: o mito de Narciso e o imaginário colonialista 

Uma elemento importante desse conto, é que será uma obsessão em quase todos os contos posteriores (em linguagem mitocrítica, é um mitema central desses contos) é a relação os especular dos humanos com  Marte. É a situação mítica de Narciso, que vê o seu reflexo mas não compreende que a imagem que enxerga é ele mesmo. As grande navegações, atualizadas para as viagens espaciais, continuam reproduzindo o que já aconteceu várias vezes antes: o homem projeta no outro aquilo que há em si mesmo, mesmo sem saber, e buscar moldar o outro a partir dessa projeção.

Considero então que os contos de Bradbury em As crônicas marcianas reaproveitam o imaginário das grandes navegações dos séculos XV e XVI do homem Ocidental e o aplica as viagens espaciais. Como diz a epigrafe do livro: " 'É sempre bom renovar o nosso senso de espanto', disse o filósofo. 'As viagens espaciais nos transformam em crianças novamente. " Desbravado e desmitificado o continente terrestre, resta então ao homem projetar sua imaginação para o espaço e para o planeta mais próximo. Como ocorre essa projeção é o tema de Bradbury, no qual não deixa de aliar uma visão crítica do imaginário colonialista com elementos simbólicos da mitologia.

"Os homens da terra" e "A terceira expedição": a resistência do colonizado manipulando o espelhamento do colonizador

Fracassada a primeira expedição, uma nova é enviada para Marte, chegando em agosto de 1999 no conto "Os homens da terra".  A Segunda Expedição chega a Marte e, encontrando a civilização marciana, pensa que será bem recepcionada. Após uma série de frustrações, são enviados a um sanatório e lá descobrem, vendo que estão juntos de outros marcianos que conseguem criar diversas materializações de suas fantasias, que os marcianos pensam que eles são loucos que mudaram sua forma e construíram sua nave com  poder da imaginação. Nesse conto, as fronteiras entre o que é real e a fantasia chegam aos extremos, pois os marcianos, graças a telepatia, conseguem dar realidade sensorial aos seus devaneios.

Após o fracasso da Segunda Expedição, uma nova expedição é enviada. Os marcianos, agora conscientes da existência dos terráqueos, utilizaram a relação especular dos colonizadores com o novo mundo como arma de defesa. No conto "A terceira expedição", que chega em marte em abril de 2000, o foguete dos terráqueos pousa uma cidade igual em todos os detalhes a uma pacata cidade do interior dos Estados Unidos. O capitão da expedição, John Black, percebe que aquela cidade é semelhante espacialmente e temporalmente a cidade de Ilinnois de 1920, cidade onde nasceu e cresceu. Outros tripulantes do foguete também reconhecem elementos da suas cidades da infância e, aos poucos, todos começam a encontrar parentes já mortos e dispersar da expedição. O capitão, inicialmente desconfiado, acaba aceitando a situação fantástica quando vê seu irmão mais velho, morto a muitos anos.

Após passar o dia com sua família, o capitão John Black vai dormir junto com o irmão  no quarto de sua infância. É deitado no escuro que ele percebe o plano os marcianos:

(...) supunha, então, que existam marcianos vivendo em Marte que viram nossa nave chegando, enxergaram nossa nave e odiaram. Suponha, então, só por que sim, que tenham vontade de nos destruir, os invasores, os visitantes indesejados, e que queiram fazê-lo de maneira muito inteligente, pegando-nos desprevenidos. Bom, qual a melhor arma que uma marciano poderia usar contra um terráqueo com armas atômicas? A resposta era interessante: Telepatia, hipnose, memória e imaginação. (p.85) [grifo meu]   
Os marcianos produzem um universo imaginário para a Terceira Expedição em que eles vivem o mundo idílico das memórias da infância, o "espaço feliz" em que os homens projetam seus mais inocentes devaneios. Desarmados mentalmente por suas próprias lembranças, os terráqueos são mortos pelos marcianos.

Essa ideia da resistência ao colonialismo através da apropriação da projeção especular do colonizador sobre o colonizado será reutilizada pelo diretor e roteirista russo Andrei Tarkovski em Solaris. A diferença é que a resistência do planeta Solaris aos colonizadores humanos é dar realidade sensorial aos grandes temores dos colonizadores, e não a memórias felizes,  levando-os a loucura ao reviver experiências traumáticas internalizadas em seus inconscientes.


".... E a lua continua brilhando": o duplo e a cultura marciana

Mesmo resistindo, os marcianos acabam sucumbindo aos terráqueos de maneira semelhante aos ameríndios durante a colonização : por uma doença. É isso que se descobre no  conto "... E lua continua brilhando", em que a Quarta Expedição chega em junho de 2001 em uma Marte desolada e cheia de corpos de marcianos com sinais de catapora.

Nesse conto há um personagem que será o protótipo do personagem Montagne em Fahrenheit 451, o arqueólogo Jeff Spender. Integrante da Quarta Expedição, Spender vai, aos poucos, percebendo a grandeza da cultura milenar que existiu em Marte e prevê que tudo isso seria destruído pelo exemplo que a humanidade já deu durante sua história na Terra. A narrativa alterna entre a perspectiva de Spender e do capitão Wilder, comandante da quarta expedição, que concorda com Spender, mas ainda assim fica relutante.

Em um diálogo entre Spender e o capitão Wilder, o primeiro demonstra seus medos frente a colonização terráquea em Marte:

[...] há evidências de muitas coisas feitas em Marte. Há ruas e casas, há livros, imagino, grandes canis, relógios e estábulos, se não forem para cavalos, bom então são para algum outro tipo de animal, quem sabe de doze patas? Para qualquer lugar que olho, vejo que as coisas foram usadas, tocadas e manuseadas durante séculos. [...] Estão todas aqui. Todas as coisas que tiveram alguma função. Todas as montanhas que tiveram nomes. E nunca seremos capaz de usá-las sem nos sentirmos desconfortáveis. [...] Por mais que nos aproximemos de Marte, nunca o tocaremos. E ficaremos bravos por isso, e o senhor sabe o que vamos fazer? Vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo a nossa imagem e semelhança. (p.97)
Conversando com seu duplo, (Spender e Wilder são duas facetas de um mesmo personagem, sendo que essa duplicação está  também relacionada também ao mito de Narciso), Spender demonstra compreender que a relação especular entre o colonizador e o colonizado, na projeção dos anseios daquele que vem dominar contra a realidade do dominado, o último esta fadado a desaparecer, pois é um estranho que gera raiva . Nessa relação, o Outro é apagado e submetido as idealizações do Sujeito colonizador, o que para Spender é catastrófico, pois a civilização marciana é para ele perfeita.

Após conflitos com alguns membros da expedição, Spender se afasta do grupo e começa a estudar a cultura da civilização marciana. Uma semana depois, Spender volta considerando-se o último marciano e mata seis integrantes da expedição, uma tentativa de retardar a colonização terráquea em Marte. Uma caçada se inicia e, já cercado, desenvolve-se um novo diálogo com o seu duplo, o capitão Wilder, em que ele demonstra sua visão  da cultura marciana:
"Os marcianos descobriram o segredo da vida entre os animais. [...] são símbolos divinos, símbolos da vida. O homem tinha se tornada homem demais e animal de menos em Marte, também. E os homens de Marte perceberam que, para sobreviver, precisariam parar de se perguntar: Por que viver? A vida era a resposta. (p.116)
A cultura marciana, com função explicitamente simbólica e terapêutica para a existência da sociedade a qual pertenceu,  existira em Marte a partir de uma combinação da arte com o estilo de vida dos marcianos, o que para Spender "sempre foram duas coisas separadas para os americanos". Assim, a civilização marciana seria uma cultura ideal, pois a arte marciana era vivida no íntimo dos indivíduos, mobilizando uma elaborado imaginário simbólico, ao contrário das civilizações modernas, que consideram que "A arte era uma coisa que ficava guardada no quarto do filho maluco, no andar de cima".

Spender acaba sendo morto pelas mãos do capitão Wilder, que percebe ser o seu duplo ao entender que Spender deixou que ele o matasse para que Wilder seguisse a resistência a invasão humana à Marte : "Se ele imaginou que havia algo em mim que era como ele, e não conseguiu me matar por causa disso, então terei muito trabalho pela frente! É isso, pronto, é isso. Agora faço o mesmo que Spender, mas penso antes de atirar" (p.123) Mas, como o leitor ficará sabendo em contos posteriores, o capitão Wilder acaba sendo enviado para uma expedição a Júpiter por suas ideias heterodoxas em relação a colonização em Marte.

"Os gafanhotos" e "Os músicos": o apagamento do diferente

Com a Quarta Expedição, a colonização terráquea em Marte efetivamente se inicia. No pequeno conto "Os gafanhotos" a construção do mundo marciano nos modelos terráqueos começa a tomar forma:
Os foguetes chegavam como gafanhtos, em enxames, formando nuvens de fumaça rosada. E dos foguetes corriam homens com marretas nas mãos, para modelar aquele mundo estranho até um formato conhecido, eliminando toda a estranheza, a boca cheia de pregos, parecidos a animais carnívoros com dentes de aço, cuspindo-os nas mão ágeis conforme ia martelando as estruturas dos chalés e cobriam os telhados com telhas para bloquear as estrelas reluzentes,  ajeitavam persianas verdes para segurar a noite. (p.134) [grifo meu]
Com a adaptação do planeta Marte ao que os homens entendem por mundo, a relação especular começa a se concretizar através de apagamento das diferenças de maneira ao local se tornar reconhecível para os padrões que os próprios colonizadores carregam em seu universo mental. O medo do personagem Spender então se realiza. Apagada a estranheza da paisagem marciana, resta apagar a estranheza cultural da civilização que viveu em Marte, como aparece no conto "Os músicos", em que um grupo de crianças invade uma cidade marciana para depredar os objetos antes da chegada dos Bombeiros:
Então saíam da casa e entravam em outro, em dezessete casas, sabendo que cada uma das cidades, por suas vez, seria queimada para ser purificada de seus horrores pelos Bombeiros, guerreiros anti-sépticos com páse arcas, levando embora os trapos de ébano e os osso que pareciam palitos de bala de hortelã, separando o terrível do normal, lentamente, mas com convicção. (p.152) [grifo meu]
A cultura marciana, o estranho fantástico ainda não totalmente eliminado do colonizado, passa pelo processo simbólico da purificação pelo fogo a partir dos Bombeiros, uma engenhosa inversão do da função dessa profissão em nossa sociedade. Esses Bombeiros "anti-sépticos", "purificadores" do imaginário, serão reaproveitados como figuras centrais no romance Fahrenheit 451 não mais queimando a cultura do Outro estrangeiro, mas sim do Outro que é temido na própria cultura que se vive.


"O marciano": a gradual conscientização da relação especular com o mundo de Marte

Em "O marciano", um casal de velhos reencontra seu filho morto há muitos anos em Marte. O leitor, já prevenido pelo conto "A terceira expedição", sabe que se trata de um marciano que assumiu a forma do filho morto do casal. E o protagonista do conto, o velho LaFarge, também, mas ainda assim prefere aceitar a projeção de seu amado filho perdido a viver sem ele:
Talvez seja errado ficar com Tom, mas só um pouquinho, enquanto não puder causar nenhum problema nem mágoa, mas como é que vamos abrir mão exatamente da coisa que mais desejávamos, por mais que ele fique só um dia e vá embora, deixando o vazio ainda mais vazia, as noites escuras mais escuras, as noites chuvosas mas úmidas? (p.207)

LaFarge é um Narciso que já possui consciência de que, na verdade, olha para um reflexo de seus próprios desejos quando olha para o "espelho" que é o marciano. Ainda assim, escolhe viver esse momento de felicidade, mesmo que ilusório, de dar forma ao seu grande sonho de ter seu filho de volta. De todos os contos, achei sua situação a mais trágica, pois ele está em um limiar da conscientização dos limites humanos da relação especular com o mundo, sabendo que aquilo que ele vive uma "fantasia" que responde aos seus mais profundos anseios mas não vendo outra alternativa.

Após levarem o filho para passar em uma cidade humana no planeta Marte, o marciano começa assumir as projeções de outras pessoas que circulam nas ruas. Em meio a perseguição que um grupo inicia ao marciano, o velho Lafarge, esperando-o em um barco, chega a seguinte conclusão: 

Por todo o trajeto, o perseguido e os perseguidores, o sonho e os sonhadores, a caça e os caçadores. [...] Todos avançando enquanto aquele sonho ia e vinha, como uma imagem refletida em dez mil espelhos, dez mil olhos, um rosto diferentes para aqueles que estavam à frente, os que vinham atrás, os que ainda não tinham encontrado, os invisíveis. [...] E lá estavam todos eles, no braco, querendo o sonho para si [...] (p.215)
O drama da colonização experimentada nos contos fantásticos de Bradbury ganham, de maneira gradativa desde o conto "A terceira expedição", as dimensões de uma drama humano mais universal, de uma dificuldade narcisística do homem moderno de se relacionar com o mundo. O marciano, simbolizando esse mundo, que na relação narcisística é sempre "novo", que todos querem moldar,  sucumbe e morre frente as varias pressões que sofre para se adaptar ao sonho de todos.

O morte do marciano em "O marciano" marca o início do declínio da colonização terrestre em Marte. O planeta vermelho também "morre" como mundo  ideal projetado pelo colonizador. Com a eclosão da guerra atômica, o sonho acaba e os terráqueos retornam a Terra para lutar e procurar seu parentes, sobrando alguns poucos sobreviventes.

"O piquenique de um milhão de anos": pós-narcisos plenamente conscientes de suas relações especulares com o mundo marciano (e terráqueo)


O último conto, "O piquenique de um milhão de anos", ocorre em outubro de 2026, fechando o ciclo de releitura do mito de Narciso na relação dos terráqueos com a colonização de Marte. Uma família, composta por um casal de três filhos, chega em um pequeno foguete ao desabitado planeta Marte fugindo da guerra que está acontecendo na Terra. Centro-me especificamente na parte final do conto em que o pai, após explicar os seus filhos que a Terra foi destruída e que eles devem construir uma nova vida, leva-os até um rio e apresenta-os aos marcianos que ele havia prometido que mostraria:
Chegaram a um canal, comprido, retilíneo, fresco, molhado e que refletia a noite.
- Sempre quis ver um marciano - disse Michael - Onde eles estão, pai? Você prometeu.
- Ali estão eles- disse o pai, virou Michael e apontou para baixo.
Os marcianos estavam lá. Timothy começou a tremer.
Os marcianos estavam lá, n canl, refletidos na água. Timothy, Michael, Robert, a mãe e o pai.
Da água ondulante, os marcianos ficaram olhando para eles por um longo, longo tempo silencioso... (p.296)

O mitema central reaproveitado do mito de Narciso aqui é o do espelhamento, como vinha sendo trabalhado desde os primeiros contos. Essa família é uma família consciente que chega a Marte para construírem projeções de si mesmos, mas uma consciência qualitativamente diferente da do velho LaForge em "O marciano". Aqui já não há mais espaço para a escolha entre a "ilusão" e  realidade que LaForge ainda tinha. Eles estão em Marte e terão que construir uma nova vida. Mas essa "nova" vida não será construída  ingenuamente, como se algo completamente diferente fosse construído, mas sim melancolicamente, através  da consciência que essa nova vida projetada é esse reflexo nas águas, é os marcianos que gostaríamos de encontrar, é afinal, um elemento de nós mesmos. Assim, há uma saída da situação mítica  alienante de Narciso mesmerizado pelo seu reflexo, mas não há uma saída da relação especular presente no mesmo mito : surge um novo Narciso no leitor, agora consciente que o que vê e anseia no mundo nada mais é que o seu reflexo.

CONCLUSÃO: "Usher II", um manifesto em defesa da imaginação e da literatura fantástica

Pela profundidade simbólica, a ficção científica de Bradbury não é uma mera diversão "pulp". As fantásticas viagens espaciais ao planeta Marte ganham aspecto crítico em relação as politicas coloniais do capitalismo imperialista, que desde as grande navegações projeta o mundo europeu como ideal a custo do apagamento de culturas milenares, aos mesmo tempo que trazem uma profunda visão simbólica sobre a relação do indivíduo como o mundo. Acho que ainda mais do que tudo isso, As crônicas marcianas é um manifesto a favor da fantasia como forma de compreensão de mundo, algo que o tecnicismo capitalista relega sempre a "casa da loucura". Defendo essa ideia a partir da minha  leitura do conto "Usher II".

Em "Usher II", um rico intelectual de nome William Stendhal cria em Marte um ambiente que emula a descrição do castelo descrito no conto "A queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe. Essa construção é uma afronta a uma série de leis terráqueas que buscaram banir toda e qualquer forma de arte em que criaturas imaginárias ou situações  fantasiosas fossem representados. William Stendhal convida todos os integrantes do departamento de Climas Morais, responsável por essa fiscalização e censura do fantástico, para uma festa no seu Castelo de Usher, povoado por criaturas das mais diferentes histórias produzidas dentro da literatura fantástica.

Um a um, esses convidados são mortos em situações literárias fantásticas e substituídos por robôs na festa. Ao responsável pelo departamento, Stendhal prepara um morte que segue a risca o conto "O barril de Amontillado", de Poe. Aos poucos, a vitima de Stendhal percebe que o protagonista está matando todos a partir de trechos retirados dos "livros proibidos". Stendhal então fala a sua vítima o seu erro:
(...) sabe por que eu fiz isso com você? Porque você queimou os livros do senhor Poe sem se dar o trabalho de os ler. Você aceitou a opinião dos outros que achavam que deveriam ser queimadas. Senão, teria percebido o que eu faria com você quando descemos aqui, há um instante. A ignorância é fatal (...) 
O personagem Stendhal "joga na cara" do poder autoritário as forças da imaginação que desprezou. O erro da vítima não é só ter ignorado um conto de Poe que poderia ter salvo sua vida, mas por ter ignorado o poder do fantástico, que permite uma reflexão profunda sobre o indivíduo quando trabalhada por um bom artista. A fantasia surge assim como uma forma de resistência em um momento marcado pelo neo-positivismo, da mesma maneira que surge também em Fahrenheit 451 e em  obras de outras artistas, como no romance 1985 de Anthony Burgess e na graphic novel V de vingança, de Alan Moore e David Lloyd.. As crônicas marcianas é para mim como uma manifesto a favor da literatura fantástica   

Logo, a fantasia fala algo para além de  "loucuras" ou "falsidades". As crônicas marcianas, através e sua apropriação simbólica da relação especular do mito de Narciso, é um exemplo de como a fantasia pode despertar imagens terapêuticas para o imaginário dos seus leitores, tornando-os narcisos mais conscientes da relação que mantem com o mundo de maneira a não morrerem afogados em suas próprias projeções.

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